Maria Luiza Rückert
CRISTO DESCEU AO HADES

Para apresentar a temática da pregação no mundo dos mortos, a primeira carta de Pedro utilizou duas fontes: uma tradição dos rabinos e o Livro de Enoque.
1 Pedro 3,18-22 e 4,6 são os dois textos que mencionam expressamente a pregação de Jesus no reino dos mortos (em hebraico, Sheol; em grego, Hades). Em outros textos do Novo Testamento também é mencionada uma descida de Cristo ao mundo dos mortos (Atos 2,31; Romanos 10,7; Efésios 4,8-10).
Quando Jesus foi crucificado e morreu, ele partilhou do destino de todos os seres humanos e também desceu ao mundo dos mortos. Ele não foi lá para permanecer, mas para pregar libertação.
Entre sua morte e ressurreição, Jesus pregou aos espíritos em prisão: os contemporâneos de Noé, considerados irremediavelmente perdidos. “A geração do dilúvio não participa do mundo vindouro” (Sanhedrim 10,3). Jesus foi em espírito ao Hades, ou seja, em sua dimensão celestial, divina. Ele morreu na carne, mas foi vivificado no espírito. Não se trata de uma dicotomia (entre carne e espírito), que é estranha ao pensamento hebraico, mas de uma declaração de que Jesus morreu como ser humano e atuou em sua dimensão divina.
A morte de Jesus expressa um poder salvífico ilimitado. Aqueles que, no entendimento do judaísmo, estão condenados à exclusão do mundo vindouro, podem ouvir a pregação de Jesus. A morte de Cristo adquire uma dimensão universal: a pregação da salvação alcança aqueles que não conheceram Cristo.
A igreja sempre se preocupou com o destino dos piedosos do Antigo Testamento. Se a geração do dilúvio pôde ouvir a pregação de Jesus, isso significa que não devemos estabelecer limites para o agir salvífico de Deus. O texto quer testemunhar “o poder salvífico, absoluto e ilimitado da morte de Jesus” (J. Jeremias), que abrange também aqueles que viveram e morreram antes de sua vinda.
Antigamente considerava-se os “espíritos em prisão” como sendo os contemporâneos de Noé. No período da Patrística passou-se a ver sob essa designação todas as pessoas falecidas antes da vinda de Cristo. Em 1 Pedro 4,6 são mencionados “os mortos”, o que indica que esse texto é “uma generalização do que foi afirmado em 3,19” (J. Jeremias, Estudos no Novo Testamento, p. 300).
Chamou a atenção dos exegetas a designação “espíritos em prisão”. Estaria muito mais de acordo com a terminologia do Novo Testamento qualificar aos que morreram no dilúvio como “almas”, como ocorre em Ap 6,9.
O tema da descida de Cristo ao mundo dos mortos tem sua origem no Livro de Enoque. Essa obra influiu na redação do Novo Testamento. Jesus combinou os títulos de Filho do Homem e Servo de Javé inspirado nos discursos nos cap. 37-71 do Livro de Enoque. Em Judas 14-15 consta uma referência explícita ao Livro de Enoque. Também Judas 6 e 2 Pedro 2,4 seguem essa obra, referindo-se ao juízo reservado aos anjos desobedientes em Gênesis 6,1-4.
No Livro de Enoque, Deus encarregou esse personagem (cap. 12-16) de se dirigir aos anjos desobedientes (Gênesis 6) e encarcerados, para transmitir-lhes que não encontrarão paz nem perdão. Mais ainda: Deus rejeitará seus pedidos por misericórdia e paz.
Enoque anunciou o juízo de Deus aos espíritos encarcerados. Com temor e tremor, eles pediramm que Enoque escrevesse uma súplica de clemência, para que lhes fosse concedido o perdão. Enoque assim procedeu e, diante do trono de Deus, esperou uma resposta. No entanto, Deus não ouviu uma só palavra do escrito que pedia clemência. Enoque retornou aos espíritos aprisionados e anunciou-lhes: “Não tereis paz nunca”.
Na prisão subterrânea, os anjos caídos ficaram sem forças ao receberem o anúncio de que o perdão é impossível.
A primeira carta de Pedro (3,18-22) declara que a pregação de Cristo ocorreu quando ele foi “vivificado no espírito” (v. 18), portanto, depois de sua ressurreição. O v. 22 menciona a ida de Jesus ao céu e a subordinação de anjos, potestades e poderes. A ida ao céu é uma referência à ascensão de Jesus.
Os “espíritos em prisão” (v. 19) são, portanto, os “anjos, potestades e poderes” (v. 22), que foram submetidos quando Jesus ocupou seu lugar à direta de Deus. “Na literatura judaica e na cristã primitiva, o termo ‘espíritos’ refere-se muito mais a seres angélicos que a seres humanos” (F. Thielman, Teologia do Novo Testamento, p. 702).
Portanto, Jesus “foi e pregou aos espíritos em prisão”, para anunciar-lhes a derrota definitiva e a condenação. A submissão desses poderes hostis reitera a condenação.
Com a ascensão de Jesus, Deus decretou a vitória escatológica sobre as forças do mal (Efésios 1,20-21). A morte de Jesus na cruz, a descida ao mundo dos mortos, a ressurreição e a ascensão formam a dinâmica da ação salvadora de Deus.
Assim como Judas 6, também o texto de 1 Pedro 3,18-22 recorreu ao Livro de Enoque, para afirmar a vitória definitiva de Cristo sobre os poderes do mal. Os anjos desobedientes estão definitivamente condenados.
“Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de Abraão” (Hebreus 2,16). Coerente com esse princípio, que perpassa toda a Bíblia, a primeira carta de Pedro reitera a condenação dos anjos desobedientes e, ao mesmo tempo, mostra que o poder expiatório da morte de Jesus não conhece limites, “pois, para este fim, foi o evangelho pregado também a mortos, para que, mesmo julgados na carne segundo os homens, vivam no espírito segundo Deus” (4,6). Até mesmo os pecadores mais reprovados e sem esperança, como os rabinos consideravam a geração do dilúvio, são alcançados pela obra redentora de Jesus Cristo. “O juízo segundo os homens na carne provavelmente se refere à morte: a sua morte física é o juízo divino sobre o homem, mas através da pregação do Evangelho lhes é dada a oportunidade da vida” (Gerhard Barth, A primeira epístola de Pedro, p. 97).
A primeira carta de Pedro deve ser lida juntamente com Mateus 27,51-53. O objetivo é manifestar o poder escatológico da morte de Jesus. As portas do Hades nunca prevalecerão contra a igreja (Mateus 16,18). Jesus Cristo é Senhor sobre vivos e mortos (2 Timóteo 4,1).
A primeira carta de Pedro amalgamou duas tradições, para afirmar a condenação definitiva dos anjos desobedientes e também anunciar que a geração do dilúvio pôde ouvir a pregação do Evangelho.
Jesus Cristo é vitorioso; ele destruiu a morte e “trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho” (2 Timóteo 1,10). Ele tem as chaves da morte e do reino da morte (Apocalipse 1,18). Por sua morte, ele destruiu “aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hebreus 2,14). Desse modo, o povo de Deus tem a “garantia do poder reconciliador da morte de Cristo também para os que faleceram antes de seu aparecimento”. Trata-se de uma “expressão do significado de salvação universal da morte de Cristo” (Wolfhart Pannenberg, Teologia Sistemática, vol. 3, p. 804).
A obra de Cristo não conhece limites.
Bibliografia consultada:
BARTH, Gerhard. A primeira epístola de Pedro. São Leopoldo: Sinodal, 1967.
JEREMIAS, Joachim. Estudos no Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2006.
THIELMAN, Frank. Teologia do Novo Testamento: uma abordagem canônica e sintética. São Paulo: Shedd Publicações, 2007.
PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática (3 volumes). São Paulo: Academia Cristã e Paulus Editora, 2009.