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  • Foto do escritorMaria Luiza Rückert

O Confronto com a Morte



Podemos nos preparar para o casamento, perguntando a outras pessoas como é a vida de casado. Mas, com a morte é diferente. Alguém pode até objetar e argumentar que conversa com os espíritos para obter informações. Nesse caso, precisamos ouvir o renomado pesquisador C. G. Jung, em Psicologia e religião oriental: “Naturalmente conheço a hipótese indemonstrável do espiritismo, sem porém admiti-la” (p. 44), “Nossa visão científica não hesita em classificar os relatos dos espíritos como emanações do inconsciente dos médiuns e dos que participam das sessões” (p. 50). Portanto, é o inconsciente dos participantes que cria o fenômeno auditivo.


Não adiante a procrastinação: precisamos nos preparar para a nossa morte. Não tenho pressa para esse confronto e estou bem de saúde. No próximo dia 9 de setembro completarei 70 anos – um motivo a mais para estar lúcida e serena.


A História Antiga mostra que a humanidade produziu três grandes obras que tratam do confronto com a morte. Esses textos se tornaram clássicos, evidenciando que a morte requer uma preparação. A morte é tão antiga quanto a humanidade e, no entanto, cada pessoa individualmente precisa se defrontar com a sua própria morte.


As três obras clássicas são: A Epopeia de Gilgamesh, O Livro dos Mortos do Antigo Egito e O Livro Tibetano dos Mortos. Na pesquisa, eu me ative ao essencial e aquilo que pode ser relevante também para os nossos dias. Certamente também existem orientações para os mortos nas culturas indígenas, mas que não foram devidamente pesquisadas pelas ciências das religiões. [Quem souber de alguma orientação para mortos entre os índios, queira compartilhar conosco. Os amigos Roberto Zwetsch e Lori Altmann certamente possuem algum material.]


O ponto de partida para esta reflexão é o seguinte: muitos postulados da espiritualidade da humanidade são convergentes. A partir do inconsciente coletivo, as grandes religiões da humanidade se ocuparam com temas afins, como a morte e nos proporcionaram uma mensagem que perdura.



A Epopeia de Gilgamesh



A Epopeia de Gilgamesh se originou a partir do lendário rei de Uruk. Gilgamesh reinou por volta de 2700 aC. Gilgamesh desprezava ostensivamente os deuses. E compartilhava esse desprezo com Enkidu, seu único amigo. Para castigar os dois, os deuses provocaram a morte de Enkidu. Gilgamesch compreendeu que a realidade do mundo inferior nos faz sentar e chorar. Pela primeira vez, Gilgamesh sentiu pavor da morte. Abalado com a morte de seu amigo Enkidu e preocupado com a finitude da vida, Gilgamesh procurou Ut-Napistim, que havia construído uma arca e sobrevivera ao dilúvio, salvando sua família e um casal de cada espécie de animais. Depois do dilúvio, Ut-Napistim foi elevado à posição dos deuses e deixou de ser mortal. Ut-Napistim disse a Gilgamesh que aos seres humanos estava destinada a morte, pois os deuses haviam reservado a imortalidade para si.


“Gilgamesh, por que andas errante? A vida que procuras, não a acharás. Quando os deuses criaram a humanidade, eles retiveram em suas próprias mãos a vida. Tu, Gilgamesh, deixa estar repleto o teu ventre, faze-te feliz dia e noite. Faze de cada dia uma festa de regozijo, dança dia e noite e diverte-te! Que tua roupa esteja brilhante e fresca, tua cabeça lavada; banha-te em água. Dá atenção ao pequeno que segura a tua mão, e deixa a tua esposa deleitar-se junto ao teu corpo. Pois esta é a tarefa da humanidade!”.


No entanto, a esposa de Ut-Napistim revelou a Gilgamesh onde ele poderia encontrar a planta da imortalidade: no fundo das águas subterrâneas. Gilgamesh mergulhou e pegou a planta. Na viagem de volta, Gilgamesh parou para se banhar numa nascente. Foi então que uma serpente se apoderou da planta, mudou de pele e desapareceu.


O mesopotâmio quer desfrutar esta vida e sente paixão por esta existência, mas consciente de que a morte decreta o fim de tudo.


Ao saber que os deuses reservaram para si a imortalidade e destinaram o ser humano à morte, Gilgamesh ungiu sua cabeça e passou a desfrutar a vida, pois esta existência é a porção que cabe à humanidade.


A Epopeia de Gilgamesh também deixa evidente que os deuses agem de um modo arbitrário, têm oscilações de humor e são até injustos, assim como a vida o é, enquanto Gilgamesh é leal, solidário, verdadeiro e justo.


A Epopeia de Gilgamesh é uma interpretação das lutas da existência humana: o trabalho, o amor, a guerra, a morte.


Em Gênesis encontramos dois relatos da criação. Gn 1,1-2,4a foi redigido pela tradição sacerdotal e se aproxima do poema Enuma Elish. Gn 2,4b-25 pertence à tradição javista e se assemelha à Epopeia de Gilgamesh. As narrativas do dilúvio também receberam a influência da Epopeia de Gilgamesh.


Também é perceptível a influência da Epopeia de Gilgamesh em Eclesiastes (capítulo 9).



O Livro dos Mortos do Antigo Egito



Durante o Império Novo, que teve início por volta de 1580 antes de nossa era, os egípcios elaboraram uma coletânea de instruções e encantamentos para ajudar os mortos em sua viagem.


O Livro dos Mortos do Antigo Egito é uma coletânea de textos, que os egípcios denominavam A Manifestação da Luz. Os egípcios formularam orações, hinos e liturgias para ajudar o morto em sua viagem para o outro mundo. O objetivo era afastar perigos que o morto poderia encontrar em sua viagem. Quando o sol se põe, a alma do morto inicia a travessia subterrânea realizada num barco. Os rituais fúnebres, os amuletos junto ao corpo e a coletânea de instruções ajudam e protegem o morto dos perigos da viagem. Os conflitos da viagem do morto também eram encenados por ocasião do sepultamento.


A princípio, somente os faraós podiam contar com a possibilidade de uma vida no além. Os textos funerários eram conhecidos como “Textos das Pirâmides”. Mais tarde, essa possibilidade também se tornou acessível aos nobres e aos altos funcionários. Numa etapa seguinte, a vida no além foi democratizada, tornando-se acessível a todos os egípcios. Os textos eram escritos no interior dos sarcófagos de madeira e tornaram-se conhecidos como “Textos dos Sarcófagos”.


Eram copiados trechos da coletânea em tiras de papiro ou de couro, os quais eram colocados sob a cabeça do morto. O destino de um morto depende de sua conduta moral durante sua existência. Posição social e riqueza não eram levados em conta. Todos precisavam se submeter a um julgamento, também os faraós. O papiro era um material de baixo custo e, portanto, também os pobres estavam protegidos para empreender sua viagem rumo ao paraíso.


Até a Sala do Julgamento, o morto precisa passar por 42 Portões, protegidos por 42 escorpiões gigantes prontos para devorá-lo. Nesses Portões quem dita o Julgamento é o próprio morto expondo tudo o que não fez, ou seja, ele formula as 42 confissões negativas:


“Não cometi maldade, não cometi falsidade, não roubei, não assaltei, não agi com violência, não causei destruição, não matei seres humanos, não roubei oferendas do templo, não pilhei a propriedade divina do templo, não desacatei os sacerdotes, não abati o rebanho divino do templo, não furtei grãos, não amaldiçoei o meu semelhante, não cometi intencionalmente a falsidade, não saqueei a terra cultivada, não agi com luxúria, não fiquei irado sem causa justa, não cometi adultério, não cometi imoralidade sexual, não contaminei a mim mesmo, não aterrorizei nenhum homem, não agi com raiva, não me fiz de surdo ao ouvir palavras de justiça e verdade, não aticei brigas, não fiz ninguém chorar, não cometi excessos, não emiti julgamentos precipitados, não cortei a pele e nem os pelos de animais divinos, não elevei minha voz em conversas, não amaldiçoei o soberano, não desobedeci as ordens do faraó, não desperdicei água, não danifiquei a irrigação, não agi com arrogância, não amaldiçoei divindades, não humilhei outras pessoas, não aumentei minhas riquezas de modo ilícito, não desprezei o convívio na minha cidade, não monopolizei os campos de cultivo, não substituí a justiça pela injustiça, não cometi violência contra os meus parentes, não destruí meu coração”.


A cada hesitação, os escorpiões que guardam os portões se agitam.

A Balança da Justiça.


O momento decisivo é a pesagem do coração, que é o músculo da alma e bombeia os pensamentos. Um escaravelho protege o coração. O peso do escaravelho do coração deve ser igual ao de uma pena, sendo então constatada a pureza do coração. O morto declara então: “Não menti, não roubei, não enganei, meu coração é bom”.


Aqueles que têm um coração leve vão para o paraíso.



O Livro Tibetano dos Mortos



O Livro Tibetano dos Mortos é lido em voz alta para a pessoa que está para morrer. A leitura continua por algum tempo após o falecimento. O propósito do Livro é ser um auxílio para a pessoa na hora de sua morte.


Após a morte, a pessoa se confronta com várias cenas e visões. Nas diversas etapas, as cenas e visões serão diferentes. Essas cenas parecem reais, no entanto, trata-se de conteúdo projetado pela própria mente da pessoa. São visões que emanam da consciência da pessoa, que se defronta com cenas diferentes, pois as visões são projetadas a partir do conteúdo de sua mente, de sua consciência.


O objetivo do Livro é guiar a consciência da pessoa, que está morrendo, para se defrontar com as experiências, que sobrevêm, uma vez que a consciência persiste após a morte. Com a morte é possível atingir a consciência e a compreensão da realidade pura.


Ao passar pela grande “cirurgia da morte”, a pessoa deve ter conhecimento sobre o “outro lado da vida”, para saber se conduzir nos diferentes estados de consciência na dimensão pós-morte. Após a morte sucedem-se as mudanças de estado de consciência. Ocorre uma percepção de imagens e sons, que podem ser aterradores. Mas, são visões que nascem dos próprios pensamentos, apegos e emoções da pessoa. A própria pessoa cria essa fantasmagoria, desencadeada pelo seu apego às posses, pela inveja, pelo ódio, pela culpa. Nessa dimensão ocorrem experiências e visões distintas, que podem ser assustadoras. A consciência passa a experienciar a existência que acabou de viver. As visões são a projeção da própria consciência. No entanto, a consciência deve manter o foco na Clara Luz Primordial.


O Livro Tibetano dos Mortos pretende conscientizar o morto de que essas experiências variam de pessoa para pessoa. É necessário aprender a morrer. Sem o devido preparo, a consciência pode sucumbir diante do pavor do desconhecido e diante da solidão da morte. É preciso estar consciente de que os horrores são gerados por nós mesmos.


Em meio ao vazio de formas e de substâncias, a pessoa deve focalizar a Clara Luz Primordial. É possível morrer de forma consciente e se preparar para o despertar espiritual.


O objetivo do Livro é proporcionar uma compreensão do que acontece quando a pessoa morre. As experiências visuais e auditivas parecem reais, mas são, na verdade, projeção da própria consciência do morto. São suas próprias formas-pensamento. As visões são emanação da própria consciência da pessoa que morreu. Acontece uma experiência da vida sob uma nova perspectiva. A ênfase não está em experimentar a realidade a partir de si. Mas, a consciência do morto vivencia a si mesma a partir da realidade que viveu.


A percepção da Clara Luz Primordial é a visão que a consciência tem do esplendor de sua própria essência; é a energia que habita o vazio do coração, que parou de bater. É a manifestação do vazio – de formas e substâncias. A consciência deve se concentrar na Clara Luz Primordial e abandonar os apegos do ego, para alcançar a iluminação. A consciência deve superar a alienação provocada pelo egoísmo. Ela deve se reconciliar com a unidade absoluta. É uma oportunidade para quem não praticou em vida o reconhecimento da essência da mente. É um guia para que a consciência do morto se liberte da ignorância e do sofrimento. A consciência poderá ser conduzida para a “Terra Pura”, onde terá a oportunidade de reconhecer sua essência, cujo vislumbre foi proporcionado pela Clara Luz Primordial.


“Todo leitor sério forçosamente irá perguntar-se se esses antigos e sábios lamas, afinal de contas, não poderiam ter vislumbrado a quarta dimensão, arrancando assim o véu dos maiores mistérios da vida”, afirma C. G. Jung, no Comentário Psicológico ao Livro Tibetano dos Mortos, organizado por W. Y. Evans-Wentz.


“O homem deve provar que fez o possível para formar uma concepção ou uma imagem da vida após a morte – ainda que seus esforços sejam confissão de impotência. Quem não o fez, sofreu uma perda” (Jung, Memórias, sonhos, reflexões, p. 262).


“Ora, o problema da morte deveria constituir o ‘centro de interesse’ essencial para o homem que está envelhecendo, como também a oportunidade de familiarizar-se precisamente com esta possibilidade. Uma inelutável interrogação lhe é colocada e é necessário uma resposta de sua parte. Para esse fim ele deveria dispor de um mito da morte, porque a ‘razão’ só lhe oferece o fosso escuro no qual está prestes a entrar; o mito poderia colocar sob seus olhos outras imagens, imagens auxiliares e enriquecedoras da vida no mundo dos mortos. Quem acredita nisso ou lhe concede algum crédito tem tanta razão como aquele que não crê. Mas aquele que nega avança para o nada; o outro, o que obedece ao arquétipo, segue os traços da vida até à morte” (Jung, Memórias, sonhos, reflexões, p. 265).


“O mundo me aparece a tal ponto unitário que se torna impossível ‘um além’ ao qual faltasse completamente a natureza das oposições polares. Porque ‘lá’ deve também reinar uma ‘natureza’ que, a seu modo, é de Deus” (Jung, Memórias, sonhos, reflexões, p. 278).


O Livro Tibetano dos Mortos nos ensina que cada indivíduo participa na construção de existência após a morte. O decisivo é focalizar a Clara Luz Primordial.


O NOVO TESTAMENTO também aponta para essa direção, na narrativa em Lucas 16,19-32. O homem rico “todos os dias se regalava esplendidamente”. Depois da morte, ele pediu que o pobre Lázaro molhasse a ponta do dedo para refrescar-lhe a língua. Aquele que viveu em função de sua boca, depois da morte sentiu o tormento localizado nessa área.


No Apocalipse lemos: “Então, ouvi uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem de suas fadigas, pois as suas obras os acompanham” (14,13). Vejamos também Hebreus 4,10.


Que nós possamos encontrar descanso – em companhia daquilo que realizamos.

Maria Luiza Rückert

Whatsapp (31) 9 9714-9941

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