Maria Luiza Rückert
TEOLOGIA FEMINISTA

A partir de 1853, as igrejas livres dos EUA começaram a ordenar mulheres.
Também nos EUA, no final do século 19, um grupo de mulheres passou a se reunir para examinar textos bíblicos que mencionam a participação da mulher. O grupo era liderado por Elizabeth Cady Stanton. Constatou-se que a Bíblia é usada contra a emancipação da mulher. A Bíblia é a expressão de uma sociedade patriarcal. Portanto, torna-se necessária uma revisão da interpretação da Bíblia. A partir desses encontros surgiu a Woman’s Bible, publicada em duas partes, respectivamente em 1895 e 1898. A Bíblia da Mulher foi um marco importante para o surgimento da Teologia Feminista, em 1970.
Na Grã-Bretanha foi fundada em 1911 a Aliança Internacional Joana D’Arc, um dos primeiros movimentos feministas católicos. Seu lema era: “Orai a Deus: Ela vos ouvirá!” Empregou-se intencionalmente o pronome no feminino.
Na década de 1950 houve uma proliferação das teologias do genitivo: teologia do trabalho (Chenu), teologia das realidades terrestres (Thils). No ano mariano de 1954 foi celebrado o centenário do dogma da Imaculada Conceição. Surgiu a teologia da mulher, elaborada por teólogos homens. Os padres formulavam representações a partir da cultura patriarcal. O contexto da teologia da mulher era o androcentrismo (o homem no centro).
Na década de 1956-1965, as principais correntes do protestantismo dos EUA passaram a ordenar mulheres para o cargo de pastoras.
Durante a realização do Concílio Vaticano II (1962-65), mulheres lideradas por Gertrud Heinzelmann dirigiram-se aos conciliares com o livro Não silenciamos por mais tempo! O manifesto denuncia “que os direitos dos homens e das mulheres não são equivalentes, uma vez que os primeiros têm a possibilidade de receber a ordenação sacerdotal, enquanto as mulheres continuam excluídas de tal possibilidade”. Depois do Concílio, a discussão prosseguiu no âmbito católico.
A teóloga Mary Daly publicou o livro A Igreja e o segundo sexo (1968), analisando a tradição bíblica e eclesiástica da perspectiva da mulher. Na igreja existem muitos “preconceitos sexuais”, pois “nesse aspecto ela até ficou para trás do mundo”. O título mostra que a obra está articulada com o livro de Simone de Beauvoir, O segundo sexo (1949), um dos textos fundamentais da mobilização feminista, juntamente com A mística da feminilidade (1963) de Betty Friedam e a Política do sexo (1969) de Kate Millet. Na primeira edição, Mary Daly ainda vislumbrava uma doutrina cristã, que deve ser considerada. Na segunda edição, a autora antepôs um Prefácio autobiográfico e uma Introdução feminista pós-cristã, considerando o cristianismo uma distorção das relações humanas; ela confirmava seu afastamento.
Em 1973, Mary Daly publicou Para além de Deus Pai. A autora abandona o cristianismo, pois considera-o sem possibilidades de recuperação. Esta frase resume o conteúdo do livro: “Se Deus é macho, então o macho é Deus”. Deus não precisa ser um substantivo; é melhor que seja um verbo. Sua intenção é “realizar a passagem de uma linguagem andro-mórfica (isto é, modelada na experiência do homem como macho, anér) para uma linguagem antropo-mórfica (isto é, modelada na experiência do ser humano, ántropos)”, observa Gibellini, A teologia do século XX, p. 423.
Em 1971 começou a ser articulada uma teologia feminista (feminist theology) nos EUA, na Europa e na América Latina. Na mesma época também surgiram a Teologia da Libertação e a Teologia Negra.
A teologia feminista posicionou-se de um modo crítico em relação à teologia da mulher, pois pretende ser uma teologia de mulheres e elaborada por mulheres, que articulam sua própria experiência de fé, pretendendo ser uma contribuição “à dimensão inacabada da teologia” (Letty Russel). O objetivo é uma teologia integral (whole theology).
Na mobilização da teologia feminista são observadas duas fases: os movimentos pela emancipação da mulher (até o início de 1960) e os movimentos de libertação da mulher, também conhecidos por neofeminismo (a partir de 1960).
A mulher toma consciência de que ela tem um papel e um lugar no mundo do homem. A emancipação e a igualdade da mulher são um pressuposto para um processo mais amplo de libertação. Devem ser analisados os fatores sociais e econômicos que ocasionam a opressão das mulheres. Também deve ser questionada uma cultura unilateralmente masculina.
E assim teve início uma “teologia contextualizada”: o primeiro momento é o engajamento e a militância; depois, a reflexão acadêmica. O labor teológico parte de narrativas compartilhadas, para formular uma experiência com Deus. Não se trata de conceitos abstratos, mas de vivência de fé. “Em vez de aceitar certo texto (lectio) emanado dos ‘padres’, devem-se levantar questões (quaestiones) sérias para procurar discernir o que significa realmente ser filhos/filhas de Deus” (Letty Russell).
Portanto, o “ato primeiro” é o compromisso e a militância nos movimentos de emancipação e de libertação da mulher. O “ato segundo” é a reflexão e a articulação. Trata-se de uma “teologia da libertação em perspectiva feminina” (Letty Russell) e também de uma “teologia crítica de libertação” (Elisabeth Schüssler Fiorenza).
A teologia feminista emprega uma metodologia a partir de uma nova relação entre prática e teoria.
Uma teologia feminina pressupõe uma contrapartida: uma teologia masculina. A teologia feminista pretende contribuir de um modo crítico para uma teologia integral. Ela é elaborada e colocada em prática por mulheres comprometidas com a militância, tornando-se uma teologia de libertação de mulheres.
A mobilização da teologia feminista pode ser dividida em três correntes.
A primeira corrente permaneceu dentro da tradição bíblico-cristã e quer exercer uma função profética visando uma transformação da sociedade.
Destaques:
EUA: Letty Russell, Rosemary Radford Ruether, Phyllis Trible, Elisabeth Schüssler Fiorenza, Anne Carr.
Europa: Kari Elisabeth Borresen, Catharina Halkes, Elisabeth Moltmann-Wendel.
A segunda corrente se movimenta em espaço aberto, pós-cristão, procurando outros caminhos para realizar a transcendência. O discurso religioso é amplo.
Destaques: Mary Daly, Peggy Ann Way, Sheila Collins.
Peggy Ann Way vê a necessidade “de libertar Deus do abuso, que o liga a uma hermenêutica masculina”.
Sheila Collin situa-se na fronteira entre a primeira e a segunda corrente.
A terceira corrente é denominada “religião da Deusa” ou “espiritualidade da Deusa”.
Elizabeth Gould-Davis escreveu O primeiro sexo (1971). A cultura do matriarcado precedeu a atual cultura do patriarcado. Marx e Engels também entenderam, influenciados por Bachofen, que a ginocracia é anterior à androcracia.
Carol Christ escreveu Porque as mulheres têm necessidade da Deusa.
Naomi Goldenberg, psicanalista junguiana, examinou o simbolismo do universo feminino.
Merlin Stone escreveu o estudo Quando Deus era mulher (1976), mostrando que o culto da Deusa era praticado na Grécia e em Roma, mas foi suprimido pelos imperadores cristãos de Roma e de Bizâncio. Os últimos templos da Deusa foram fechados por volta do ano 500.
Na Europa, destacam-se também na terceira corrente: Heide Göttner-Abendroth, Ursula Kratlinger, Elga Sorge.
A Feminist Spirituality tem sido criticada por ter perdido o caráter de militância (que caracteriza uma teologia da libertação) e por ter se refugiado e isolado no ginocentrismo. A tarefa da teologia é lutar no espírito profético do âmbito cristão, contribuindo para uma teologia da integralidade.
Phyllis Trible, pesquisadora do AT, formulou o programa de despatriarcalizar a interpretação da Bíblia. “Despatriarcalizar não é uma ação que o exegeta executa no texto. É uma ação hermenêutica presente no interior da própria Bíblia. Nós apenas a expomos, não a impomos”. Ela constata que dentro da própria Bíblia já se observa um princípio despatriarcalizante.
Letty Russell propôs uma interpretação não-sexista da Bíblia. Ela declara que a tradição é “uma ação de Deus que deve ser transmitida às outras pessoas de ambos os sexos e de quaisquer raças” (Teologia feminista).
Em seu livro Psicanálise da Bíblia, Theodor Reik escreveu: “O relato bíblico do nascimento de Eva é a pior brincadeira que os milênios fizeram até hoje com a mulher”.
Os seguintes textos de Paulo têm sido utilizados para realçar a submissão da mulher ao homem.
1 Coríntios 11:1-16. Em relação a outros temas tratados na carta, este parece desconcertante. O termo “cabeça” é usado de modo literal e também metafórico. Paulo argumenta com uma hierarquia: Deus é cabeça de Cristo, este é cabeça do homem, o qual é cabeça da mulher. Ao invés de se ater na “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1:27), Paulo menciona a “imagem e glória”. Ao homem cabe a imagem. A mulher tem glória por intermédio do homem. A mulher foi criada para o homem. No final do texto, parece que o próprio Paulo não está convicto de sua argumentação, baseada “na natureza” (v. 14) e na interpretação rabínica de Gênesis. Paulo conclui, afirmando que a argumentação desenvolvida não passa de um costume social, condicionado ao local e à época.
1 Coríntios 14:33b-35. A advertência dirigida às mulheres interrompe a abordagem sobre os profetas (iniciada em 14:1). Essa advertência contradiz a afirmação de Paulo em 11:5. E, em 14:33b-35, ele recorreu à “Lei” para sustentar a argumentação. Paulo não costuma argumentar com amparo da Lei. Em alguns manuscritos, esses versículos aparecem depois do v. 40. Certamente trata-se de uma interpolação posterior. Por ocasião da formação do cânon do NT houve restrições para aceitar essa glosa. Para a nossa reflexão teológica atual é importante tomarmos conhecimento de que se trata de uma inserção posterior.
Efésios 5:21-33. A visão de casamento está condicionada pela cultura da época: o marido ama e a mulher se submete. É apresentada a hierarquia: Cristo é cabeça da igreja, o marido é cabeça da mulher.
1 Timóteo 2:8-15. Influenciadas pelo gnosticismo, que proibia o casamento, mulheres abandonaram seu matrimônio e seu lar, para formar um grupo de pessoas que alegavam desfrutar de uma liberdade espiritual superior. Essas mulheres começaram a perturbar os cultos com revelações. Paulo teve que tomar uma posição diante de circunstâncias bem específicas ocorridas em Éfeso. Ele teve que responder a posicionamentos extremados, que colocavam em dúvida o casamento, a gravidez, a família e o amor entre homem e mulher. Para corrigir as distorções, Paulo recorreu a uma argumentação que decorre do contexto social da época e do ensinamento dos rabinos.
A teologia feminista discorda de duas modalidades de interpretação da Bíblia.
A interpretação bíblica antifeminista insiste na inferioridade e na submissão da mulher. A ala mais moderada fala que a mulher complementa o homem. Essa interpretação recorre também à Patrística e à Escolástica.
A interpretação bíblica pós-cristã considera a visão patriarcal da Bíblia como sendo irremediável.
Elisabeth Schüssler Fiorenza escreveu Em memória dela, observando que, para as feministas pós-cristãs, o texto e a mensagem da Bíblia são patriarcais e sem proveito, enquanto que, para as feministas da tradição bíblico-cristã, somente o texto é patriarcal, mas a mensagem é libertadora; o texto é o recipiente da mensagem.
A autora propõe uma “hermenêutica crítica” que parte dos textos patriarcais para elaborar uma reconstrução teológica das origens do cristianismo. O cristianismo primitivo formou comunidades alternativas. Em seus primórdios, o cristianismo apresentava dois movimentos. O movimento de renovação foi iniciado por Jesus entre os judeus. O movimento missionário foi iniciado em Antioquia, antes de Paulo, e se expandiu pelo contexto helenista. Os dois movimentos têm como objetivo um “discipulado de iguais” no âmbito de “comunidades de iguais”. Nessas “comunidades inclusivas” eram integrados os excluídos. Febe era diaconisa, Priscila, colaboradora e Júnia se destacou entre os apóstolos.
A autora considera Gl 3:28 como “a magna charta do feminismo cristão”. É uma confissão batismal citada por Paulo para evidenciar a nova realidade da fé. “Gl 3:28 é uma expressão-chave, não da teologia paulina, mas da autocompreensão teológica do movimento missionário cristão que teve um impacto histórico de amplo alcance” (Em memória dela).
Ela também aponta para a ambigüidade em Paulo: ele afirma a igualdade entre homem e mulher, mas também restringe a participação das mulheres no culto. Em Colossenses, Efésios e nas Pastorais, o “discipulado de iguais” é espiritualizado. Marcos é contemporâneo de Colossenses e concede mais espaço para a mulher. João é contemporâneo das Pastorais e ressalta o amor na atuação de Jesus e como característica do discipulado.
A hermenêutica feminista se ocupa com os textos patriarcais (como Ef 5:21-33) e com a interpretação patriarcal. Deve ser pesquisada a história da transmissão do texto, para que apareça a mensagem de libertação. Onde se percebe um processo de patriarcalização das estruturas da igreja primitiva, deve-se redescobrir o estrato mais antigo, que é o “discipulado de iguais”.
Comentando Gl 3:28, Jürgen e Elisabeth Moltmann escrevem: “É tempo de serem estas palavras traduzidas em atitude na igreja (há uma grande necessidade disto) e na sociedade (que as esperou até agora com grande paciência)”.
A teologia feminista também pesquisou a avaliação da mulher na tradição cristã. Tertuliano considerou Eva “a porta do diabo”, acrescentando: “foste a primeira a violar a lei divina; foste tu a convencer aquele que nem o próprio diabo havia sido capaz de agarrar; com quanta facilidade provocaste a queda do homem, a imagem de Deus; por causa do castigo que mereceste, isto é, a morte, até o filho de Deus teve que morrer”.
“Na concepção neoplatônica, utilizada por Agostinho, está presente um simbolismo negativo da feminilidade, relacionada com carne, imperfeição e pecado, ao passo que o princípio masculino é relacionado com o espírito” (Rosino Gibellini, A teologia do século XX, p. 434).
“Em Tomás de Aquino encontra variada aplicação o princípio da biologia aristotélica, de acordo com o qual a mulher é um ‘macho falhado’ (mas occasionatus). A geração humana, quando perfeita, tende sempre a reproduzir um macho; quando, porém, não chega a seu estágio final de perfeição por uma espécie de interrupção do processo gerador, o resultado da geração é uma mulher. O princípio aristotélico encontrou aplicação não só em teologia, mas também em vastos setores da cultura, antes que a ciência do século passado chegasse a dar uma explicação exaustiva do dinamismo da geração humana com a descoberta do óvulo feminino e do papel ativo da mulher na geração” (Rosino Gibellini, A teologia do século XX, p. 434).
A teóloga norueguesa Elisabeth Kari Borresen escreveu Natureza e papel da mulher em Agostinho e Tomás de Aquino (1968). Ela constatou que a teologia clássica apresenta esta tese: na ordem da criação observa-se a subordinação da mulher ao homem; na ordem da graça, a equivalência entre homem e mulher. Ela detectou que a igreja primitiva se defrontou com a antropologia greco-romana e também com tendências gnósticas e maniqueístas (ensinando que a mulher não alcançaria a perfeição escatológica).
Ida Raming pesquisou a tradição canônica e teológica da igreja.
A teologia clássica se apóia em Gn 2:18 (a mulher foi criada para o homem) e em Gn 2:22 (a mulher foi tirada do homem). Mesmo sendo ambos criados para serem a imagem de Deus, o homem (vir) é apresentado com uma qualidade especial.
Elisabeth Kari Borresen denomina esses posicionamentos de “sexologia teológica”. Em Natureza e papel da mulher em Agostinho e Tomás de Aquino, ela escreve: “A teologia se encontra, pois, na condição de ser provocada pela sociologia e pela psicologia, assim como o havia sido no passado pelas ciências naturais, com Copérnico, Galileu e Darwin. Então os teólogos foram obrigados a abandonar uma cosmologia geocêntria e uma posição antropocêntrica do ser humano; agora é preciso renunciar a uma relação androcêntrica dos sexos, criando uma nova antropologia”.
Os estudos feministas têm concentrado sua atenção na análise do gênero. Em sentido biológico, gênero indica o sexo (masculino e feminino). Em sentido sociológico, gênero indica o significa do homem e da mulher numa determinada situação histórica e cultural.
A teologia feminista se defronta com um discurso andromorfo, uma cultura androcêntrica, uma religião autoritária e estruturas patriarcais.
Erich Fromm detectou duas formas de religião: a autoritária e a humanitária.
Jesus chamou Deus de Abba. Chamar Deus de Pai significa que nós procedemos dele. Além da origem, podemos contar com sua proteção e abrigo. Deus protege a vida de suas criaturas. “Estamos diante da seguinte questão: é o Deus da Bíblia apenas uma ulterior manifestação da antiqüíssima divindade do patriarcado, ou será que o ‘Pai de Jesus Cristo’ é outro Deus; um Deus que guia tanto mulheres como homens à comum liberdade do tempo messiânico, em que não haverá mais nenhum matriarcado nem patriarcado, pois cessará todo domínio do homem sobre o homem” (Jürgen Moltmann).
Lactâncio havia descrito Deus com a representação romana do pater familias, reforçando o conceito patriarcal de Deus. “Foi esta mistura entre conceito cristão e conceito pagão de Deus que marcou profundamente em sentido patriarcal a história cristã da Europa” (Moltmann).
“Como Deus é nosso Pai, estamos livres de autoridades patriarcais” (Rosemary Ruether).
Gerhard Lohfink vê no título de “santo Padre”, atribuído ao papa, uma “aberta desobediência a Mt 23:9” – “A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus”.
Jürgen Moltmann também faz referência a Mt 23:9 e observa que “o domínio patriarcal da Igreja de Cristo contradiz abertamente a fé na proximidade paterna de Deus”.
Jesus não veio manifestar Deus como macho (anér), mas como ser humano (ánthropos). O esvaziamento de Jesus (Fl 2:7) também expressa o esvaziamento do patriarcado.